Maus tratos na infância podem ter efeitos negativos
duradouros
Está provado.
Maus tratos na infância não provocam apenas traumas
psicológicos reversíveis. Mas também danos permanentes
no desenvolvimento e funções cerebrais. Os hemisférios
esquerdos de pessoas vitimadas pela violência desenvolvem-se
significativamente menos do que deveriam. Martin H.
Teicher, professor de psiquiatria na Escola de Medicina
da Universidade de Harvard, explica detalhadamente o
processo.
Em 1994, a polícia
de Boston chocou-se ao descobrir um menino de quatro
anos de idade, desnutrido e trancado num apartamento
imundo de Roxbury, onde vivia em condições pavorosas.
Pior, as mãozinhas da criança tinham sido horrivelmente
queimadas. Soube-se que a mãe, viciada em drogas, tinha
posto as mãos do menino sob a torneira de água fervente
para castigá-lo por ter consumido a comida de seu namorado.
A criança ferida não tivera nenhum tipo de assistência
médica. A história perturbadora chegou rapidamente às
manchetes. Adotado, o menino recebeu enxertos de pele
para ajudar as mãos machucadas a recuperar suas funções.
Mas, embora as feridas físicas da vítima tenham sido
tratadas, descobertas recentes indicam que ferimentos
infligidos a sua mente em desenvolvimento podem nunca
cicatrizar de todo.
Ainda que seja um exemplo extremo,
esse caso notório infelizmente não é incomum. A cada
ano, as agências de bem-estar do menor dos EUA recebem
mais de três milhões de denúncias de abuso e negligência
no trato de crianças, e levantam evidências suficientes
para substanciar mais de um milhão de casos.
Não é surpresa para nós que as pesquisas
revelem um forte laço entre maus tratos físicos, sexuais
e emocionais e o desenvolvimento de problemas psiquiátricos.
Mas, até o início dos anos 90, profissionais da área
de saúde mental acreditavam que as dificuldades emocionais
e sociais ocorriam principalmente
por meios psicológicos. Os maus tratos na infância eram
vistos como causadores do desenvolvimento de mecanismos
de defesa intra-psíquicos, responsáveis pelo fracasso
do indivíduo na idade adulta. Ou como paralisadores
do desenvolvimento psicossocial, mantendo a vítima presa
à condição de "criança ferida". Os pesquisadores
achavam que os danos eram basicamente um problema de
software, tratáveis com uma reprogramação via terapia,
ou que podiam simplesmente ser apagados com exortações
do tipo "esqueça" ou "supere".
Novas investigações sobre as conseqüências
dos maus tratos na infância, incluindo o trabalho que
meus colegas e eu fizemos no McLean Hospital em Belmont,
Massachusetts, e na Harvard Medical School, parecem
contar uma história diferente. Como o abuso infantil
ocorre durante o período formativo crítico em que o
cérebro está sendo fisicamente esculpido pela experiência,
o impacto do extremo estresse pode deixar uma marca
indelével em sua estrutura e função. Tais abusos, parece,
induzem a uma cascata de efeitos moleculares e neurobiológicos,
que alteram de modo irreversível o desenvolvimento neuronal.
Personalidades extremas
O efeito do abuso infantil pode manifestar-se
de várias formas, em qualquer idade. Internamente, pode
aparecer como depressão, ansiedade, pensamentos suicidas
ou estresse pós-traumático; pode também expressar-se
externamente como agressão, impulsividade, delinqüência,
hiperatividade ou abuso de substâncias. Uma condição
psiquiátrica fortemente associada a maus tratos na infância
é o chamado distúrbio de personalidade limítrofe (borderline
personality disorder). O indivíduo com essa disfunção
tem como característica enxergar os outros em termos
de preto ou branco, oito ou oitenta, muitas vezes colocando
seus interlocutores num pedestal, para depois transformá-los
em vilões, a partir de algo percebido como desfeita
ou traição. Aqueles que sofrem desse distúrbio são propensos
a explosões de cólera e episódios transitórios de paranóia
ou psicose. Eles possuem tipicamente uma história de
relações intensas e instáveis, muitas vezes tentam escapar
por meio do abuso de substâncias, e apresentam impulsos
auto-destrutivos ou suicidas.
Ao tratar três pacientes com distúrbio
de personalidade limítrofe, em 1984, comecei a suspeitar
que a exposição precoce a várias formas de maus tratos
havia alterado o desenvolvimento de seus sistemas límbicos.
O sistema límbico é uma série de núcleos cerebrais interconectados
(centros neurais), que desempenham um papel central
na regulagem da emoção e da memória. Duas regiões límbicas
criticamente importantes são o hipocampo e a amígdala,
localizados abaixo do córtex, no lobo temporal (ver
ilustração). Acredita-se que o hipocampo seja importante
na formação e recuperação tanto da memória verbal quanto
da emocional, enquanto a amígdala está ligada à criação
do conteúdo emocional da memória - por exemplo, sentimentos
relacionados ao medo e a reações agressivas.
Meus colegas do hospital McLean, Yutaka
Ito e Carol A. Glod, e eu nos perguntamos se o abuso
infantil não poderia prejudicar o amadurecimento saudável
dessas regiões do cérebro. Os maus tratos na infância
poderiam estimular as amígdalas a um estado de irritabilidade
elétrica elevada ou danificar o hipocampo em desenvolvimento
por meio de uma exposição excessiva aos hormônios do
estresse? Fomos mais longe, refletindo se danos ao hipocampo
ou superexcitação da amígdala não poderiam produzir
sintomas semelhantes aos de pacientes com epilepsia
de lobo temporal (ELT), que esporadicamente perturba
as funções desses núcleos do cérebro.
Formigamentos e
alucinações
Durante
os ataques de ELT, os pacientes permanecem conscientes,
enquanto sofrem um leque de sintomas psicomotores causados
por tempestades elétricas nessas regiões. Efeitos associados
incluem o desencadeamento abrupto de formigamentos,
entorpecimento ou vertigem; manifestações como olhar
fixamente ou contorcer-se; e sintomas, como enrubescimento,
náusea ou a sensação de "frio no estômago"
que se tem num elevador de alta velocidade. A ELT pode
também causar alucinações.
Para explorar a relação entre abuso precoce e disfunção
do sistema límbico, idealizei, em 1984, uma lista de
perguntas para medir a freqüência com que os pacientes
apresentavam sintomas semelhantes aos da ELT. Em 1993,
meus colegas e eu computamos as respostas de 253 adultos.
Pouco mais da metade relatou ter sido vítima de abusos
físicos ou sexuais ou ambos, quando criança.
Comparados com pacientes que não relataram
maus tratos, a média de pontos da checagem foi 38 %
maior em vítimas de abuso físico (mas não sexual) e
49 % mais elevada em vítimas de abuso sexual (mas não
físico). Os indivíduos que admitiram tanto abusos físicos
quanto sexuais tiveram pontuação 113 % maior do que
os que não relataram nenhum tipo de abuso. Maus tratos
sofridos antes dos 18 anos tiveram mais impacto do que
os ocorridos em idade posterior, e homens e mulheres
foram afetados de modo semelhante.
Durante os ataques de ELT, os pacientes permanecem conscientes,
enquanto sofrem um leque de sintomas psicomotores causados
por tempestades elétricas nessas regiões. Efeitos associados
incluem o desencadeamento abrupto de formigamentos,
entorpecimento ou vertigem; manifestações como olhar
fixamente ou contorcer-se; e sintomas, como enrubescimento,
náusea ou a sensação de "frio no estômago"
que se tem num elevador de alta velocidade. A ELT pode
também causar alucinações.
Para explorar a relação entre abuso precoce e disfunção
do sistema límbico, idealizei, em 1984, uma lista de
perguntas para medir a freqüência com que os pacientes
apresentavam sintomas semelhantes aos da ELT. Em 1993,
meus colegas e eu computamos as respostas de 253 adultos.
Pouco mais da metade relatou ter sido vítima de abusos
físicos ou sexuais ou ambos, quando criança. Comparados
com pacientes que não relataram maus tratos, a média
de pontos da checagem foi 38 % maior em vítimas de abuso
físico (mas não sexual) e 49 % mais elevada em vítimas
de abuso sexual (mas não físico). Os indivíduos que
admitiram tanto abusos físicos quanto sexuais tiveram
pontuação 113 % maior do que os que não relataram nenhum
tipo de abuso. Maus tratos sofridos antes dos 18 anos
tiveram mais impacto do que os ocorridos em idade posterior,
e homens e mulheres foram afetados de modo semelhante.
Em 1994, nossa equipe do McLean procurou apurar se o
abuso físico, sexual ou psicológico estava associado
a anormalidades das ondas cerebrais em eletroencefalogramas
(EEGs), que possibilitavam uma medida mais direta da
irritabilidade límbica do que a checagem. Em busca dessa
conexão, revisamos as fichas de 115 admissões consecutivas
num hospital psiquiátrico para crianças e adolescentes.
E encontramos anormalidades significativas de ondas
cerebrais em 54 % dos pacientes com histórico de trauma
precoce, mas em apenas 27 % dos pacientes que não tinham
sofrido abusos. Observamos anomalias nos EEGs de 72
% daqueles que haviam documentado histórias de abusos
físicos e sexuais sérios. As irregularidades apareceram
nas regiões frontal e temporal do cérebro e, para nossa
surpresa, envolviam especificamente o hemisfério esquerdo
ao invés dos dois lados, como seria de se esperar.
Vítimas de incesto
Nossas descobertas se encaixaram com as de um
estudo, realizado em 1978, com EEGs de adultos que haviam
sido vítimas de incesto. O autor do estudo, Robert W.
Davies, da Escola de Medicina da Universidade de Yale,
e sua equipe descobriram que 77 % apresentavam anormalidades
nos EEGs e 27 % sofriam de ataques. Trabalhos subseqüentes
de outros pesquisadores, usando imageamento por ressonância
magnética (IRM) confirmaram a associação entre maus
tratos precoces e redução no tamanho do hipocampo adulto.
A amígdala também pode ser menor.
Em 1997, J. Douglas Bremner, na época na Escola de Medicina
da Universidade de Yale, e seus colegas, compararam
as escanerizações por ressonância magnética feitas em
17 adultos submetidos a abusos físicos ou sexuais na
infância, todos eles portadores de distúrbio de estresse
pós-traumático, com as imagens de 17 pessoas saudáveis,
que correspondiam aos doentes em idade, sexo, raça e
outras características (anos de escolarização, abuso
de álcool, se canhotos ou destros). Os hipocampos esquerdos
das vítimas de abuso com distúrbio de estresse pós-traumático
eram, em média, 12 % menores que os do grupo de controle,
mas os hipocampos direitos tinham tamanho normal. Como
seria de se esperar, dado o papel importante do hipocampo
na função da memória, a pontuação desses pacientes também
foi menor em testes de memória verbal do que a do grupo
que não sofreu abusos.
Em 1997, Murray B. Stein, da Universidade da Califórnia
em San Diego, também encontrou anormalidades nos hipocampos
esquerdos de 21 mulheres adultas que tinham sofrido
abusos sexuais na infância e apresentavam o chamado
distúrbio de personalidade múltipla, uma condição que
alguns pesquisadores acreditam ser comum em mulheres
vítimas de abusos. Stein verificou que, nessas mulheres,
o hipocampo esquerdo era significativamente reduzido,
mas o tamanho do direito era relativamente normal. Além
disso, ele encontrou uma clara correspondência entre
o grau de redução no tamanho do hipocampo e a gravidade
dos sintomas dissociativos das pacientes. Em 2001, Martin
Driessen, do Gilead Hospital, em Bielefeld, Alemanha,
e seus colegas relataram uma redução de 16 % no tamanho
do hipocampo e de 8 % no tamanho da amígdala em mulheres
adultas com personalidade limítrofe e um histórico de
maus tratos na infância.
Por outro lado, em 1999, quando Michael De Bellis e
seus colegas, da Escola de Medicina da Universidade
de Pittsburgh, mediram cuidadosamente imagens de ressonância
magnética dos hipocampos de 44 crianças maltratadas
portadoras de distúrbio de estresse pós-traumático e
de 61 crianças saudáveis do grupo de controle, eles
não observaram uma diferença significativa no volume.
Recentemente, Susan Andersen, Ann Polcari e eu obtivemos
resultados semelhantes em nossa análise volumétrica
dos hipocampos de 18 adultos jovens (de 18 a 22 anos
de idade), com um histórico de repetidos abusos sexuais
forçados, acompanhados de medo ou terror, que foram
comparados a 19 jovens saudáveis da mesma idade. Ao
contrário de estudos anteriores, os participantes do
grupo de controle não eram pacientes, mas pessoas recrutadas
entre público em geral.
Redução da amígdala
Não observamos diferenças de volume nos hipocampos.
Como ocorreu com o grupo de Driessen, no entanto, constatamos
uma redução média de 9,8% no tamanho da amígdala esquerda,
que se correlacionava com sentimentos de depressão,
irritabilidade ou hostilidade. Perguntamo-nos por que
o hipocampo era menor em pacientes que sofreram abuso
nos estudos de Bremner, Stein e Dreissen, mas normal
no de De Bellis e em nossa própria investigação. Das
várias respostas possíveis, a mais provável é que o
estresse exerça uma influência muito gradual no hipocampo,
de modo que seus efeitos adversos talvez não sejam discerníveis
a nível anatômico até que as pessoas fiquem mais velhas.
Além disso, estudos feitos com animais por Bruce S.
McEwen, da Universidade Rockefeller, e Robert M. Sapolsky,
da Universidade de Stanford, já haviam demonstrado a
marcante vulnerabilidade do hipocampo às devastações
do estresse. Ele não é apenas susceptível por se desenvolver
lentamente; é também uma das poucas regiões do cérebro
que continuam a produzir novos neurônios após o nascimento.
Ademais, tem uma densidade maior de receptores do hormônio
de estresse, o cortisol, do que quase todas as outras
áreas do cérebro. A exposição aos hormônios do estresse
pode mudar significativamente o formato dos maiores
neurônios do hipocampo e até mesmo matá-los. E também
suprimir a produção de novas células.
Experiências com ratos, feitas por Christian Caldji
e Michael J. Meaney, da Universidade McGill, e Paul
M. Plotsky, da Universidade Emory, mostraram que o estresse
precoce reconfigura a organização molecular dessa região.
Um resultado importante é a alteração da estrutura de
receptores gaba na amígdala (ver ilustração). Esses
receptores reagem ao ácido gama-aminobutírico (gaba),
o principal neurotransmissor inibidor do cérebro, que
atenua a excitabilidade elétrica dos neurônios. A redução
da função desse neurotransmissor produz atividade elétrica
excessiva e pode desencadear ataques. Tal descoberta
proporcionou uma explicação molecular elegante para
nossas constatações de anormalidades em eletroencefalogramas
e irritabilidade límbica em pacientes que sofreram abuso
na infância.
O efeito sobre o sistema límbico foi apenas a conseqüência
mais esperada do trauma infantil. Estávamos intrigados,
no entanto, com nossa observação anterior de que os
maus tratos estavam associados a anormalidades no hemisfério
esquerdo. Isso nos inspirou a examinar o efeito do abuso
em idade precoce no desenvolvimento dos hemisférios
cerebrais. Decidimos usar a coerência em eletroencefalograma,
um sofisticado método de análise quantitativa que fornece
evidências sobre a microestrutura do cérebro, sua fiação
e sua circuitaria. A técnica proporciona uma medida
matemática do grau de inter-relação entre os neurônios
do córtex que processam e modificam os sinais elétricos
cerebrais. Em geral, níveis anormalmente elevados de
coerência em eletroencefalograma são evidências de desenvolvimento
diminuído nessas trocas entre neurônios.
Hemisférios menos desenvolvidos
Nossa equipe de pesquisa usou essa técnica, em 1997,
para comparar 15 voluntários saudáveis com 15 pacientes
psiquiátricos, crianças e adolescentes, que tinham um
histórico confirmado de intenso abuso físico ou sexual.
Medidas de coerência mostraram que os córtex esquerdos
dos jovens do grupo de controle eram mais desenvolvidos
do que os direitos - um resultado compatível com o fato
de que os destros tendem a ter o córtex esquerdo dominante.
Os pacientes maltratados, no entanto, tinham o córtex
direito claramente mais desenvolvido, muito embora todos
fossem destros e, portanto, tivessem o córtex esquerdo
dominante. Os hemisférios direitos de pacientes que
sofreram abusos desenvolveram-se tanto quanto os dos
do grupo de controle, mas seus hemisférios esquerdos
ficaram substancialmente para trás.
O hemisfério esquerdo é especializado na percepção e
expressão da linguagem, enquanto o direito se especializa
no processamento de informações espaciais e no processamento
e expressão de emoções - particularmente emoções negativas.
Perguntamo-nos se crianças maltratadas não teriam armazenado
suas memórias perturbadoras no hemisfério direito, e
se a recordação dessas memórias não poderia ativá-lo
preferencialmente.
Para
testar essa hipótese, Fred Schiffer trabalhou em meu
laboratório no McLean em 1995, medindo a atividade hemisférica
em adultos durante a lembrança de uma memória neutra
e de uma memória perturbadora precoce. Aqueles com um
histórico de abuso pareceram usar predominantemente
seus hemisférios esquerdos ao pensar em memórias neutras
e os direitos ao pensar em lembranças precoces ruins.
Os participantes do grupo de controle usaram ambos os
hemisférios em grau comparável para as duas atividades
- o que sugere que suas reações eram mais integradas
entre os dois hemisférios.
Como a pesquisa de Schiffer indicou
que o trauma de infância era associado à menor integração
entre os hemisférios esquerdo e direito, decidimos procurar
alguma deficiência no principal caminho para a troca
de informações entre os dois hemisférios, o corpo caloso.
Em 1997, Andersen e eu colaboramos com Jay Giedd, do
National Institute of Mental Health, em busca do efeito
postulado. Juntos verificamos que, em meninos que haviam
sido submetidos a abusos ou abandono, as partes centrais
do corpo caloso eram significativamente menores do que
nos grupos de controle. Além do mais, em meninos, o
abandono tinha um efeito muito maior do que qualquer
outro mau trato. Em meninas, no entanto, o abuso sexual
era o fator mais poderoso, associado a uma grande redução
no tamanho das partes centrais do corpo caloso.
Nossa mais recente descoberta tem suas raízes nos estudos
seminais de Harry F. Harlow, da Universidade de Wisconsin-Madison.
Na década de 50, Harlow comparou macacos criados por
suas mães com macacos criados por "mães substitutas",
de arame e pelúcia. Os macacos criados por mães substitutas
tornaram-se adultos socialmente não integrados e extremamente
agressivos. Trabalhando com Harlow, W. A. Mandon, do
Delta Primate Center, em Louisiana, descobriu que essas
conseqüências eram menos graves se a mãe substituta
fosse balançada de um lado para outro. J. W. Prescott,
do National Institute of Child Health and Human Development,
levantou a hipótese de que esse movimento poderia ser
transmitido para o cerebelo, particularmente sua parte
central, chamada vermis cerebelar (ver ilustração).
Entre outras funções, o vermis modula os núcleos que
controlam a produção e a liberação dos neurotransmissores
norepinefrina e dopamina. Essa parte do cérebro desenvolve-se
gradualmente, continua a criar neurônios depois do nascimento
e tem uma densidade de receptores de hormônios de estresse
ainda maior do que a do hipocampo. De modo que a exposição
a esses hormônios pode afetar fortemente seu desenvolvimento.
O descontrole dos sistemas de norepinefrina e dopamina,
os neurotransmissores comandados pelo vermis, pode produzir
sintomas de depressão, psicose e hiperatividade, assim
como prejudicar a atenção. A ativação do sistema de
dopamina desloca a atenção para o hemisfério esquerdo
(verbal), enquanto a ativação do sistema de norepinefrina
desloca a atenção para o hemisfério direito (emocional).
Talvez o mais curioso, o vermis também ajuda a regular
a atividade elétrica no sistema límbico, e a estimulação
vermal pode suprimir ataques no hipocampo e na amígdala.
Sintomas psiquiátricos
R. G. Heath, trabalhando na Universidade
de Tulane nos anos 50, descobriu que os macacos de Harlow
possuíam focos epilépticos em certas estruturas cerebrais,
inclusive o hipocampo. Em trabalho posterior com seres
humanos, ele constatou que a estimulação elétrica do
vermis reduzia a freqüência dos ataques e melhorava
a saúde mental num pequeno número de pacientes com distúrbios
neuropsiquiátricos intratáveis. Este resultado levou
meus colegas e eu a especular se o abuso na infância
não poderia produzir anormalidades no vermis cerebelar
capazes de responder pelos sintomas psiquiátricos, irritabilidade
límbica e degeneração gradual do hipocampo.
Para começar a testar essa hipótese, Carl M. Anderson
trabalhou recentemente comigo e com Perry Renshaw no
centro de imageamento cerebral do Hospital McLean. Usando
novas técnicas que desenvolvemos, pudemos monitorar
pela primeira vez o fluxo sangüíneo regional do cérebro
em repouso, sem usar marcadores radiativos ou corantes
de contraste. Quando o cérebro está repousando, a atividade
neuronal de uma região corresponde de perto à quantidade
de sangue que essa área recebe para manter-se ativa.
Anderson descobriu uma impressionante correlação entre
a atividade no vermis cerebelar e o grau de irritabilidade
límbica (determinado a partir de minha já mencionada
lista de perguntas), tanto em jovens adultos saudáveis
quanto naqueles com um histórico de abusos sexuais repetidos.
Para qualquer nível de sintomatologia límbica, no entanto,
a quantidade de fluxo sangüíneo no vermis cerebelar
foi marcadamente menor em indivíduos com histórico de
traumas. O baixo fluxo de sangue aponta para um dano
funcional na atividade do vermis. Na média, pacientes
vítimas de abuso tiveram pontuação mais alta na checagem
presumivelmente porque seu vermis não podia ativar-se
o suficiente para controlar níveis mais altos de irritabilidade
límbica.
Juntas, essas descobertas sugerem um intrigante modelo
que explica a forma na qual o distúrbio de personalidade
limítrofe pode aparecer. A integração reduzida entre
os hemisférios e um corpo caloso menor podem predispor
os pacientes a deslocar-se abruptamente de estados dominados
pelo hemisfério esquerdo para estados dominados pelo
hemisfério direito, com percepções e memórias emocionais
muito diferentes. Esse domínio hemisférico polarizado
pode fazer com que a pessoa veja os amigos, a família
e os colegas de trabalho de forma excessivamente positiva
em um estado e de maneira retumbantemente negativa em
outro - o que é marca registrada do distúrbio. Além
disso, a irritabilidade elétrica límbica pode produzir
sintomas de agressão, exasperação e ansiedade. Atividades
de EEG anormais no lobo temporal também são freqüentemente
observadas em pessoas com comportamento auto-destrutivo
e forte propensão para o suicídio.
Nossa equipe começou essa pesquisa a partir da hipótese
de que o estresse precoce era um agente tóxico que interferiria
na progressão normal e suavemente orquestrada do desenvolvimento
do cérebro, levando a problemas psiquiátricos duradouros.
Frank W. Putnam, do Children's Hospital Medical Center,
de Cincinnati, e Bruce D. Perry, do Alberta Mental Health
Board, do Canadá, agora sustentam a mesma hipótese.
Eu, no entanto, passei a questionar e a reavaliar nossa
premissa inicial. Os cérebros humanos evoluíram de forma
a serem moldados pela experiência, e dificuldades precoces
eram rotineiras durante o nosso desenvolvimento ancestral.
É plausível que o cérebro em desenvolvimento nunca tenha
evoluído para enfrentar a exposição a maus tratos e
portanto seja danificado de uma maneira não-adaptativa?
Isso parece extremamente improvável. A alternativa lógica
é que a exposição precoce ao estresse gera efeitos moleculares
e neurobiológicos que alteram o desenvolvimento neuronal
de uma forma adaptativa, que prepara o cérebro adulto
a sobreviver e a se reproduzir num mundo perigoso.
Adaptações ao ambiente
adverso
Quais traços ou capacidades podem ter sido benéficos
para a sobrevivência nas duras condições de tempos remotos?
Alguns dos mais óbvios são o potencial para mobilizar
uma intensa reação de luta-ou-fuga, a resposta agressiva
ao desafio sem hesitação indevida, a capacidade de estar
em estado de alerta para o perigo e produzir contraposições
robustas ao estresse que facilitem a recuperação de
ferimentos. Nesse sentido, podemos reconsiderar as mudanças
no cérebro que observamos como sendo adaptações a um
ambiente adverso.
Embora esse estado adaptativo ajude o indivíduo afetado
a atravessar a salvo seus anos reprodutivos (e até provavelmente
aumente a promiscuidade sexual), que são críticos para
o sucesso evolutivo, ele custa caro. McEwen recentemente
teorizou que a superativação dos sistemas de reação
ao estresse, uma resposta que pode ser necessária para
a sobrevivência a curto prazo, aumenta o risco de obesidade,
diabetes tipo 2 e hipertensão; leva a um grande número
de problemas psiquiátricos, incluindo um alto risco
de suicídio; e acelera o envelhecimento e a degeneração
das estruturas do cérebro, inclusive do hipocampo.
Nossa hipótese é que alimentação adequada e ausência
de estresse precoce intenso permitem que nosso cérebro
se desenvolva de uma maneira que é menos agressiva e
mais estável do ponto de vista emocional e integrada
social, empática e hemisfericamente. Acreditamos que
esse processo aumenta a capacidade dos animais sociais
de construir estruturas.
Fonte Scientific American Brasil (http://www2.uol.com.br/sciam/) |