Essa história de existirem
apenas quatro gostos básicos sempre foi contra
a intuição de que sentimos mais sabores
do que isso. De fato, os japoneses bem que sabiam, há
quase cem anos, que existe um quinto gosto, além
dos tradicionais doce, salgado, azedo e amargo. Um gosto
tão especial que o nome em japonês, de
difícil tradução, acabou vingando
também nas outras línguas: é o
gosto “umami”, que pode significar tanto
“delicioso” como “pungente”,
“saboroso”, “essencial” ou “de
carne”.
Mas existe uma tradução mais simples.
Trata-se do gosto do glutamato, um sal encontrado nas
prateleiras dos supermercados e nas mesas dos restaurantes
orientais, vendido como Aji-no-moto ou Sazon, e adicionado
ao tempero de macarrão instantâneo e a
salgadinhos em geral. E presente naturalmente, também,
no molho de soja e em vários alimentos como queijo
parmesão, tomate, leite, atum, frutos do mar
e... cérebro.
Sim, o cérebro não só é
comestível (as versões bovina e ovina
são encontradas no seu açougue favorito
sob o nome pouco convidativo de “miolos”,
iguaria aliás muito apreciada pelos franceses),
como também é um dos alimentos que mais
contém glutamato. Por uma razão muito
simples: o glutamato – o mesmo glutamato do aji-no-moto
– é o principal neurotransmissor do cérebro,
a moeda mais usada na troca de sinais entre neurônios.
Foi o japonês Kikunae Ikeda, da Universidade
Imperial de Tóquio, quem no início do
século XX caracterizou o gosto umami como um
sabor inimitável por qualquer combinação
dos quatro sabores básicos. Ikeda também
determinou, a partir da análise bioquímica
de alimentos ricos no sabor, como o atum e o caldo de
carne, que o elemento responsável pelo sabor
umami é o glutamato, o mais comum dos vinte aminoácidos
- os bloquinhos que compõem as proteínas
- essenciais à vida humana.
Segundo a lógica de sinalizar a presença
na boca de nutrientes necessários (açúcar,
sais minerais e ácidos) ou substâncias
tóxicas e indesejáveis (em geral amargas),
faz sentido existir um gosto básico sensível
ao componente mais comum das proteínas. O glutamato
inserido nas proteínas, no entanto, não
provoca o sabor umami. Mas com o calor do cozimento,
as proteínas se partem em pedaços menores,
liberando glutamato – e com ele o sabor “rico”
do caldo de carne, por exemplo, riquíssimo em
glutamato livre.
Testes de percepção já tinham
mais do que comprovado que o glutamato provoca um gosto
específico em humanos – e aliás,
em ratos também -, mas para reconhecer definitivamente
o status do umami como o quinto gosto básico
era necessário encontrar um receptor exclusivamente
seu: uma proteína na superfície de células
da língua que servisse de “encaixe”
para o glutamato, para que em seguida uma mensagem acusando
sua presença fosse enviada ao cérebro.
Ironicamente, foi justamente o “receptor umami”
o primeiro dos receptores gustativos a ter seu gene
descoberto: até o ano de 2000, os outros gostos,
considerados básicos por unanimidade, ainda não
tinham receptores identificados.
O fato de o glutamato também ser usado como
neurotransmissor sugeria que talvez um dos próprios
receptores de glutamato do cérebro fosse usado
também na língua. No entanto, o que poderia
tornar a vida dos pesquisadores mais fácil, já
que a seqüência dos genes para esses receptores
cerebrais já era conhecida, colocava dois novos
problemas. Primeiro, os receptores de glutamato conhecidos
são extremamente sensíveis, de modo que
se eles agissem também na superfície da
língua, qualquer grãozinho de aji-no-moto
provocaria um sabor fortíssimo– o que não
é o caso. E segundo, o glutamato também
é usado dentro da língua como um neurotransmissor;
portanto, já existem receptores no local dedicados
à transmissão de sinais para o cérebro,
e não diretamente à detecção
de glutamato na comida. Como diferenciar qual é
o receptor do glutamato dos neurônios e qual o
do glutamato da comida?
A natureza ajudou. O receptor umami é semelhante
a um daqueles receptores de glutamato do cérebro,
sim. Mas falta-lhe um pedaço, o que o torna ao
mesmo tempo imprestável para a transmissão
de sinais para o cérebro, mas simplesmente perfeito
para detectar as altas concentrações de
glutamato livre que passam pela boca. Ou seja: é
inconfundível.
A equipe do americano Stephen Roper, da Escola de Medicina
da Universidade de Miami, já tinha indicações
de que um determinado tipo de receptor para glutamato
do cérebro estaria envolvido na gustação
do umami. Testes em seu laboratório para detectar
vários tipos de receptores de glutamato na língua
de ratos haviam mostrado a presença de uma versão
do receptor chamada mGluR4 (Glu de Glutamato, R de Receptor,
4 de Quarta versão identificada, e m de... metabotrópico,
maneira curta de dizer “receptor que requer metabolismo
de alguns intermediários dentro da célula
para surtir seu efeito”, ao contrário dos
outros receptores de glutamato, que modificam diretamente
a carga elétrica da célula). Além
disso, drogas que ativam especificamente o mGluR4 também
têm “gosto de glutamato”, enquanto
outras drogas que ativam outros tipos de receptores
para glutamato não têm gosto.
No entanto, continuava a incompatibilidade da concentração
necessária para “ligar” o receptor.
Para resolver a questão, Nirupa Chaudhari e Ana
Marie Landin, no laboratório de Roper, fizeram
um preparado de línguas de rato (parece até
receita de bruxaria!) e aplicaram técnicas de
biologia molecular para extrair dali seqüências
de DNA semelhantes à do mGluR4. O sequenciamento
completo, publicado na revista Nature Neuroscience em
fevereiro de 2000, mostrou que a versão gustativa
do receptor é truncada: falta justamente parte
da região que fica exposta na boca, pescando
glutamatos livres na comida. E o que é melhor:
embora truncada, essa versão ainda gruda glutamato
em concentrações compatíveis com
a sensibilidade de tanto ratos como humanos.
Falando em ratos, eles não são os únicos
privilegiados, além do homem, a sentir o gosto
do glutamato. Até bactérias possuem um
receptor parecido, que gruda aminoácidos em geral
– o que dá uma idéia da importância
do receptor, presente desde nesses serezinhos microscópicos
até no todo-poderoso homem, e também sugere
de onde surgiu, ao longo da evolução,
a família de receptores de glutamato.
A identificação do receptor umami confirma
de vez seu status de quinto gosto básico. Mas
outro mistério permanece. Embora o glutamato
sozinho confira à comida o sabor umami, seu efeito
é potencializado pela presença de nucleotídeos
parecidos com os que compõem o material genético
(você já parou para pensar que come DNA
todos os dias? É, leite, carnes e vegetais vêm
cheios de DNA, além dos tradicionais açúcares,
proteínas e sais minerais. Só que ninguém
lembra!). Quem conferir a embalagem dos salgadinhos
ou do Miojo verá: lá na lista dos ingredientes
estão o inositol monofosfato e a guanosina monofosfato.
Talvez esses nucleotídeos interajam com outros
receptores, que mais tarde têm seus sinais para
o cérebro combinados aos do receptor umami; ou
talvez eles se grudem ao mesmo tempo no mesmo receptor,
ou até antes, facilitando a detecção
do glutamato. Agora que o receptor umami foi identificado,
todas essas possibilidades poderão ser testadas
diretamente.
Fica faltando apenas conferir se o cérebro,
com todo seu glutamato livre, tem mesmo sabor umami.
Eu confesso que nunca tive coragem de encarar um ensopadinho
de miolos, e mesmo em nome da ciência o prato
me parece um tanto nojento, para não dizer fedido.
Mas gosto não se discute. Alguém se habilita?
Fonte: http://www.cerebronosso.bio.br
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