Prof. Dr. Cláudio L. N. Guimarães dos Santos
A velha imagem de um sistema nervoso central fundamentalmente
estático, segundo a qual áreas encefálicas específicas
e invariáveis seriam responsáveis, independentemente
da consideração de outros fatores, por determinados
aspectos do processamento cognitivo (linguagem, raciocínio,
percepção, etc.) começa a ser progressivamente substituída
por uma visão bastante mais dinâmica, na qual fatores
tais como idade, nível educacional, grau de proficiência
em determinada atividade, lateralidade manual, passam
a ser considerados decisivos na determinação dos padrões
de ativação encefálica relacionados às diferentes funções
cognitivas.
A inexistência de tecnologias eficazes e não invasivas
capazes de permitir o estudo, em tempo real, do funcionamento
do encéfalo (isto é, da porção do sistema nervoso central
que fica dentro da caixa craniana), em indivíduos normais
ou patológicos, durante a execução de tarefas cognitivas,
foi, durante muito tempo, um dos principais fatores
responsáveis pela perpetuação da concepção segundo a
qual tal funcionamento seria, essencialmente, uma entidade
estática e pouco plástica.
Felizmente, com o advento das modernas tecnologias
de neuroimagem dinâmica, tais como o PET (Tomografia
por Emissão de Pósitrons), o SPECT (Tomografia por Emissão
de Fóton Único), a Ressonância Magnética Funcional,
a Eletroencefalografia de Alta-Resolução e a Magnetoencefalografia,
essa equivocada concepção teórica começa a ser corrigida.
Com o intuito de ilustrar essa nova maneira
de encarar a anatomia funcional do encéfalo, apresentarei,
a seguir, dois exemplos bastante característicos da
atual tendência da pesquisa neurobiológica, cujos resultados
não parecem deixar dúvidas quanto ao caráter fundamentalmente
dinâmico do funcionamento do sistema nervoso central
subjacente ao processamento cognitivo na espécie humana.
O primeiro desses exemplos diz respeito a um trabalho,
realizado no final dos anos 1980, por um grupo de importantes
pesquisadores norte-americanos, dentre os quais Michael
Posner, Marcus Raichle e Steve Petersen.
Através da utilização do PET, esses autores
estudaram as variações do nível de atividade encefálica,
em sujeitos normais, todos estudantes da Universidade
de Washington, durante a execução, por parte desses
sujeitos, de uma tarefa de geração de verbos a partir
de substantivos.
Por exemplo, em resposta à apresentação da palavra “martelo”,
o sujeito testado deveria dizer “bater” ou “martelar”;
frente à palavra “faca”, o sujeito deveria dizer “cortar”,
e assim por diante.
Um primeiro resultado importante obtido com esse experimento
diz respeito ao conjunto de áreas do encéfalo que foram
distintivamente ativadas durante a execução da referida
tarefa cognitiva. Além da ativação de regiões tradicionalmente
associadas ao processamento da linguagem, tais como
as áreas de Wernicke e de Broca localizadas, respectivamente,
no lobo frontal e no lobo temporal, ambos no hemisfério
cerebral esquerdo, esses pesquisadores puderam também
demonstrar a ativação seletiva de estruturas tais como
a porção anterior do giro cíngulo e o cerebelo direito,
cujo envolvimento no processamento da linguagem não
era, até então, previsto pelos modelos tradicionais.
Contudo, o resultado mais interessante desse trabalho
diz respeito à constatação da existência de dois padrões
distintos de ativação encefálica, para um mesmo sujeito
e para uma mesma tarefa cognitiva, cada um desses padrões
estando associado a um grau distinto de proficiência
na execução dessa tarefa.
Assim é que esses pesquisadores observaram que sujeitos
inexperientes na execução da tarefa de geração de verbos
a partir de substantivos apresentavam uma ativação encefálica
extensa, envolvendo, tal como já vimos, o córtex frontal
esquerdo (incluindo a área de Broca), o córtex temporal
esquerdo (incluindo a área de Wernicke), a porção anterior
do giro cíngulo e o hemisfério cerebelar direito.
Todavia, à medida que tais sujeitos se tornavam proficientes
na tarefa de gerar verbos a partir de substantivos,
toda aquela extensa ativação do encéfalo parecia ser
substituída por uma ativação muito mais restrita e localizada,
desta feita, numa pequena região (o córtex insular)
de ambos os hemisférios cerebrais.
A meu ver, esse resultado indica, de modo
bastante contundente, que os mecanismos encefálicos
relacionados às diversas funções cognitivas parecem
estar organizados de maneira muito mais complexa do
que até então era suposto pela maioria dos modelos teóricos
desenvolvidos para dar conta de tais mecanismos.
De fato, fica bastante evidente, a partir
dos resultados apresentados, que diversos sistemas encefálicos
podem estar subjacentes a uma mesma função cognitiva
e que o acionamento de um ou de outro desses sistemas
parece estar na dependência de fatores tais como o grau
de proficiência do indivíduo para aquela função que
está sendo investigada.
O segundo dos exemplos que eu gostaria de
apresentar se refere a um trabalho que realizei, em
colaboração com Jean-Luc Nespoulous e Pierre Celsis,
durante o meu Doutorado, na Universidade de Toulouse-Le
Mirail e na Unidade INSERM-230, ambas situadas em Toulouse
(França), na transição dos anos oitenta para os anos
noventa.
O objetivo principal de meu trabalho era
investigar, com auxílio do SPECT, os mecanismos neurobiológicos
subjacentes à compreensão e à memorização, por sujeitos
normais, de textos de 3 diferentes tipos (narrativo,
argumentativo, descritivo) que lhes eram apresentados
por via auditiva.
Sintetizo, a seguir, os principais resultados que puderam
ser obtidos nessa pesquisa:
(a) Os mecanismos responsáveis pelo processo de compreensão
e memorização dos textos narrativos e argumentativos
parecem sofrer um processo de deterioração com o envelhecimento;
quanto mais idoso o indivíduo, pior seu desempenho em
tarefas de compreensão/memorização desses dois tipos
de texto;
(b) As seguintes áreas do córtex cerebral parecem estar
envolvidas no processo de compreensão e memorização
de textos: (i) córtex frontal direito e esquerdo (medial
e lateral); (ii) córtex da junção temporoparietooccipital
direita e esquerda;
(c) O processo de compreensão e memorização de textos
argumentativos e que tenham conteúdo semântico abstrato
parece ser responsável por maior aumento do fluxo sangüíneo
cerebral regional (ou seja, parece ser responsável por
maior ativação cortical) do que o processo de compreensão
e memorização de textos narrativos que tenham conteúdo
semântico concreto;
(d) Frente a um mesmo tipo de texto a ser processado,
os indivíduos parecem se distribuir num continuum. Numa
das extremidades desse continuum estariam os indivíduos
do “tipo I” que são aqueles que apresentam, durante
o processo de compreensão/memorização de texto, bom
desempenho cognitivo associado a um discreto nível de
ativação cortical; já na outra extremidade desse continuum
seriam encontrados os indivíduos do tipo II que, por
sua vez, são aqueles que apresentam um mau desempenho
associado a um elevado nível de ativação cortical. Dentro
de certos limites, é possível fazer uma analogia entre
os indivíduos do tipo I e um motor de automóvel bem
regulado, por um lado, e entre os indivíduos do tipo
II e um motor de automóvel mal regulado, por outro.
Enquanto o motor bem regulado apresenta bom desempenho
qualquer que seja o nível de exigência a que é submetido,
no caso do motor mal regulado, quanto maior a solicitação,
pior será o seu desempenho;
(e) Os mecanismos neurobiológicos subjacentes ao processo
de compreensão e memorização de textos parecem ter uma
representação cortical assimétrica. Nos indivíduos destros
tais mecanismos estariam predominantemente representados
no hemisfério cerebral esquerdo, enquanto que nos indivíduos
não destros (canhotos e ambidestros) essa representação
cortical se daria, predominantemente, no hemisfério
cerebral direito.
Novamente, à semelhança dos resultados obtidos no trabalho
de Posner, Raichle e Petersen acima apresentados, nossos
dados também parecem indicar que a organização dos sistemas
encefálicos subjacentes às diversas funções cognitivas
é bastante complexa, apresentado-se constituída de diferentes
subsistemas, cuja ativação seletiva parece estar na
dependência de variáveis tais como idade, nível educacional,
grau de proficiência em determinada atividade mental,
lateralidade manual e outras que, até bem pouco tempo,
não eram levadas em conta pela pesquisa teórica e experimental
realizada no âmbito da Neurociência Cognitiva.
Fonte: http://www.drauziovarella.com.br |